Por algum motivo estranho, a cama quentinha e
confortável não parecia tão atraente naquela manhã de sábado. Ele levantou-se e
sentou na beirada da grande cama de casal onde os pais costumavam dormir - bom,
não apenas dormir, não é? Se é que você me entende -, esse pensamento o
enojava, mas não tinha escolha, era a única cama e colchão que tinha para
dormir. Procurou seus chinelos escondidos em algum lugar do escuro com os
próprios pés. Andou pesadamente até a porta e a abriu com um ruído. "Porcaria",
pensou o garoto, imaginando que todos na casa acordariam com aquele simples
som, o que não aconteceu.
Na cozinha encontrou o leite recém-tirado das tetas
nojentas daquela vaca nojenta. Sua repulsa era grande, mas a fome era maior,
então, empurrou a nata com o dedo, despejou o leite num copo e bebeu tudo num
gole só. "Blerg!", foi o som que o garoto emitiu ao mesmo tempo em
que esboçava uma careta na sua cara cheia de espinhas.
- Pelo menos você tem leite pra beber! - uma voz
áspera sussurrou na soleira da porta que dava para o quintal, assustando o
garoto.
O dono da voz xingou o pobre jovem de todas as formas
possíveis em sua mente, enquanto imaginava o motivo pelo qual Deus lhe dera
aquele fardo insuportável. Andou com suas galochas sujas de terra e estrume
para dentro da casa e desapareceu nas sombras comuns naquela residência escura.
O menino foi até a porta com um pedaço de pão na mão
e o devorou observando o nascer do Sol. Lá estava ele, finalmente. Assim os
pesadelos terminavam e ele podia encontrar-se com seu único amigo verdadeiro
naquela propriedade, onde era obrigado a viver com pessoas estranhas que não
sabiam sorrir.
Voltou ao quarto e vestiu uma "roupa para
brincar". Saiu correndo pela casa, e ao passar pela cozinha, pegou outro
pedaço de pão. Com seus passos desesperados e desajeitados de menino que está
virando rapaz, correu para longe, muito longe.
O vento atingia seu rosto de uma forma deliciosa. Era
como se pudesse sentir os bons tempos em suas bochechas. O cabelo liso e escuro
voava para trás e um sorriso nascia em seu rosto. Enfim, havia avistado seu
amigo.
Lá estava ele. Como sempre, a esperar. Pelo garoto,
ou pelo pão?
Saiu em disparada. E então, os dois se encontraram,
numa alegria que dava gosto de ver. O garoto abaixou-se e esfregou as orelhas
do cão, que lambeu-lhe o rosto, cumprimentando lhe. O jovem rapaz sentou no
capim baixo e seco ao lado do animal e deu-lhe o pão.
- Pra você, amigo - ele disse, com o sorriso sincero
nos lábios. Estava ansioso para começar a falar sobre suas histórias, suas
saudades, seus momentos, enquanto o cão escutava com toda sua sabedoria canina.
Naquele dia os dois se divertiram como nunca,
brincadeiras e segredos, alegrias e mais brincadeiras. Bom, mas o que o garoto
não sabia quando despediu-se do cão, é que jamais voltaria para a maldita casa
que lhe dera tantos pesadelos e tantos sentimentos ruins.
Lá estava ele no fundo do poço, literalmente.
Distraído em sua felicidade por ter um amigo naquele lugar horrível, não viu o
grande buraco na parte alta do pasto, caiu sem ter como voltar. No meio do pasto, perto das carvoarias
antigas, no poço antigo que seu tio ranzinza se recusara a encher de terra, por
"falta de tempo". Ninguém sabia onde estava. Ele não contara às
primas implicantes nem à tia mal-humorada, pois elas estavam dormindo quando
saiu. E seu tio o viu saindo, mas ele jamais o procuraria, porque o que mais
queria na vida era se livrar do fardo, e se o dito cujo, por acaso,
desaparecesse, para o velho seria como ganhar na loteria.
Depois de analisar e tentar todas as maneiras de sair
dali, o pobre garoto, cansado, deitou-se na terra úmida e chorou. Lágrimas
pesadas, que pareciam ter saído de sua alma sofrida. Ele pensou nos pais, que
tão jovens, foram levados para junto de Deus, segundo o padre Efigênio, aquele
padre gentil que o abrigou na sacristia enquanto esperava o tio vir buscar-lhe.
Lembrou das duas irmãs mais novas, Rosa e Carmem, enviadas a um convento para
converterem-se em freiras. Ah, como sentia saudade das irmãs e das brincadeiras
que faziam juntos - ele era sempre o vencedor por ser o mais velho. Pensou nos
amigos, nos doces que comprava com o troco da merenda todo dia depois da aula,
nas lições de casa que odiava, mas que agora lhe traziam lembranças de um tempo
em que sorrir não era difícil. A mente do garoto encontrava muitos caminhos que
sempre levavam ao mesmo fim: o amigo cão. "Quem levará pão para o pobre
coitado?", pensava, e soluços balançavam-lhe o corpo magro. "Quem lhe
fará companhia quando sentir-se sozinho?". Mais lágrimas.
O garoto sentou-se e respirou fundo. Observou que o
Sol estava a pino. "Meio-dia", pensou. Um estrondo irrompeu de suas
entranhas. "Que fome!". Deitou-se novamente e fechou os olhos. Dormiu
um sono infantil e feliz, sonhou com lembranças de sua saudosa infância.
Ao acordar, o dia já era noite, então percebeu
assustado que ainda estava no poço, e começou novamente a chorar. "Vou morrer!",
dizia, numa voz que parecia-lhe um grito, mas era um sussurro em meio aos
soluços. Abraçou os joelhos e balançava para frente e para trás, sem perceber,
enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto jovem e triste. Ao longe, escutou
um som. Concentrou-se. Eram latidos? Sim! Latidos!
- EI! - gritou o menino, o que pareceu-lhe inútil.
- OLÁ? - uma voz respondeu.
Os latidos estavam mais próximos.
- AQUI! - seus gritos ecoavam no poço e pareciam não
sair dali - AMIGO, ESTOU AQUI! - gritava desesperadamente, na esperança de que
fosse mesmo seu amigo canino, e não um caçador de cervos.
Os latidos chegaram ao topo do poço. O garoto olhava
para cima tentando enxergar seu amigo cão ou qualquer ser que pudesse ajudá-lo,
podia ouvi-lo, mas tudo que seus olhos enxergavam era escuridão.
E então, uma luz provinda de uma lanterna surgiu nas
paredes do poço, assim como os gritos do homem que viera salvá-lo e os latidos
do cão que o guiara.
- EI, MENINO! ESTÁ TUDO BEM? - o homem gritou.
- SIM! MAS ESTOU COM FOME - ele respondeu, mal
contendo-se de alegria.
- VOU TE TIRAR DAÍ! VOCÊ TEM SORTE EM TER UM AMIGO
FAREJADOR!
- FAREJADOR? - o garoto gritou, mas então parou e
disse só para si, sabendo que o cachorro estava ouvindo-lhe - obrigado.