quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Farejador


                Por algum motivo estranho, a cama quentinha e confortável não parecia tão atraente naquela manhã de sábado. Ele levantou-se e sentou na beirada da grande cama de casal onde os pais costumavam dormir - bom, não apenas dormir, não é? Se é que você me entende -, esse pensamento o enojava, mas não tinha escolha, era a única cama e colchão que tinha para dormir. Procurou seus chinelos escondidos em algum lugar do escuro com os próprios pés. Andou pesadamente até a porta e a abriu com um ruído. "Porcaria", pensou o garoto, imaginando que todos na casa acordariam com aquele simples som, o que não aconteceu.
                Na cozinha encontrou o leite recém-tirado das tetas nojentas daquela vaca nojenta. Sua repulsa era grande, mas a fome era maior, então, empurrou a nata com o dedo, despejou o leite num copo e bebeu tudo num gole só. "Blerg!", foi o som que o garoto emitiu ao mesmo tempo em que esboçava uma careta na sua cara cheia de espinhas.
                - Pelo menos você tem leite pra beber! - uma voz áspera sussurrou na soleira da porta que dava para o quintal, assustando o garoto.
                O dono da voz xingou o pobre jovem de todas as formas possíveis em sua mente, enquanto imaginava o motivo pelo qual Deus lhe dera aquele fardo insuportável. Andou com suas galochas sujas de terra e estrume para dentro da casa e desapareceu nas sombras comuns naquela residência escura.
                O menino foi até a porta com um pedaço de pão na mão e o devorou observando o nascer do Sol. Lá estava ele, finalmente. Assim os pesadelos terminavam e ele podia encontrar-se com seu único amigo verdadeiro naquela propriedade, onde era obrigado a viver com pessoas estranhas que não sabiam sorrir.
                Voltou ao quarto e vestiu uma "roupa para brincar". Saiu correndo pela casa, e ao passar pela cozinha, pegou outro pedaço de pão. Com seus passos desesperados e desajeitados de menino que está virando rapaz, correu para longe, muito longe.
                O vento atingia seu rosto de uma forma deliciosa. Era como se pudesse sentir os bons tempos em suas bochechas. O cabelo liso e escuro voava para trás e um sorriso nascia em seu rosto. Enfim, havia avistado seu amigo.
                Lá estava ele. Como sempre, a esperar. Pelo garoto, ou pelo pão?
                Saiu em disparada. E então, os dois se encontraram, numa alegria que dava gosto de ver. O garoto abaixou-se e esfregou as orelhas do cão, que lambeu-lhe o rosto, cumprimentando lhe. O jovem rapaz sentou no capim baixo e seco ao lado do animal e deu-lhe o pão.
                - Pra você, amigo - ele disse, com o sorriso sincero nos lábios. Estava ansioso para começar a falar sobre suas histórias, suas saudades, seus momentos, enquanto o cão escutava com toda sua sabedoria canina.
                Naquele dia os dois se divertiram como nunca, brincadeiras e segredos, alegrias e mais brincadeiras. Bom, mas o que o garoto não sabia quando despediu-se do cão, é que jamais voltaria para a maldita casa que lhe dera tantos pesadelos e tantos sentimentos ruins.
                Lá estava ele no fundo do poço, literalmente. Distraído em sua felicidade por ter um amigo naquele lugar horrível, não viu o grande buraco na parte alta do pasto, caiu sem ter como voltar.  No meio do pasto, perto das carvoarias antigas, no poço antigo que seu tio ranzinza se recusara a encher de terra, por "falta de tempo". Ninguém sabia onde estava. Ele não contara às primas implicantes nem à tia mal-humorada, pois elas estavam dormindo quando saiu. E seu tio o viu saindo, mas ele jamais o procuraria, porque o que mais queria na vida era se livrar do fardo, e se o dito cujo, por acaso, desaparecesse, para o velho seria como ganhar na loteria.
                Depois de analisar e tentar todas as maneiras de sair dali, o pobre garoto, cansado, deitou-se na terra úmida e chorou. Lágrimas pesadas, que pareciam ter saído de sua alma sofrida. Ele pensou nos pais, que tão jovens, foram levados para junto de Deus, segundo o padre Efigênio, aquele padre gentil que o abrigou na sacristia enquanto esperava o tio vir buscar-lhe. Lembrou das duas irmãs mais novas, Rosa e Carmem, enviadas a um convento para converterem-se em freiras. Ah, como sentia saudade das irmãs e das brincadeiras que faziam juntos - ele era sempre o vencedor por ser o mais velho. Pensou nos amigos, nos doces que comprava com o troco da merenda todo dia depois da aula, nas lições de casa que odiava, mas que agora lhe traziam lembranças de um tempo em que sorrir não era difícil. A mente do garoto encontrava muitos caminhos que sempre levavam ao mesmo fim: o amigo cão. "Quem levará pão para o pobre coitado?", pensava, e soluços balançavam-lhe o corpo magro. "Quem lhe fará companhia quando sentir-se sozinho?". Mais lágrimas.
                O garoto sentou-se e respirou fundo. Observou que o Sol estava a pino. "Meio-dia", pensou. Um estrondo irrompeu de suas entranhas. "Que fome!". Deitou-se novamente e fechou os olhos. Dormiu um sono infantil e feliz, sonhou com lembranças de sua saudosa infância.
                Ao acordar, o dia já era noite, então percebeu assustado que ainda estava no poço, e começou novamente a chorar. "Vou morrer!", dizia, numa voz que parecia-lhe um grito, mas era um sussurro em meio aos soluços. Abraçou os joelhos e balançava para frente e para trás, sem perceber, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto jovem e triste. Ao longe, escutou um som. Concentrou-se. Eram latidos? Sim! Latidos!
                - EI! - gritou o menino, o que pareceu-lhe inútil.
                - OLÁ? - uma voz respondeu.
                Os latidos estavam mais próximos.
                - AQUI! - seus gritos ecoavam no poço e pareciam não sair dali - AMIGO, ESTOU AQUI! - gritava desesperadamente, na esperança de que fosse mesmo seu amigo canino, e não um caçador de cervos.
                Os latidos chegaram ao topo do poço. O garoto olhava para cima tentando enxergar seu amigo cão ou qualquer ser que pudesse ajudá-lo, podia ouvi-lo, mas tudo que seus olhos enxergavam era escuridão.
                E então, uma luz provinda de uma lanterna surgiu nas paredes do poço, assim como os gritos do homem que viera salvá-lo e os latidos do cão que o guiara.
                - EI, MENINO! ESTÁ TUDO BEM? - o homem gritou.
                - SIM! MAS ESTOU COM FOME - ele respondeu, mal contendo-se de alegria.
                - VOU TE TIRAR DAÍ! VOCÊ TEM SORTE EM TER UM AMIGO FAREJADOR!
                - FAREJADOR? - o garoto gritou, mas então parou e disse só para si, sabendo que o cachorro estava ouvindo-lhe - obrigado.

Nenhum comentário: