quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pecado


     O enterro havia sido três horas atrás, e eu sentia dificuldade para dormir. Lembrava-me do que levou o falecido para o outro lado. Bebida, cachaça, cirrose. Típico.
Olhei pela rachadura da janela de madeira. Vi a luz branca da lua iluminando o quintal. Recordei-me da minha infância, dura e longa, e pensei que quase toda ela foi vivida ali, naquele terreiro de poeira escura.
     Deitei-me em minha cama e esperei pela inconsciência. Sem que percebesse, estava sonhando mais uma vez.

     Levantei, vesti os trapos que costumava chamar de roupa e saí correndo para tomar o café-da-manhã. A mãe estava com o bule nas mãos, um lenço na cabeça e um sorriso no rosto ao me ver. Com ela ali, eu sabia que tudo sairia perfeito. "Bom dia". Ela disse, enquanto colocava café na xícara sobre a mesa. Aquela cena bonita de repente transformou-se. Um homem barbudo e mal encarado entrou na cozinha pela porta dos fundos. Seus passos eram firmes, seus braços iam pra frente e para trás, suas mãos, em punhos, pareciam querer socar alguém. Encolhi-me de medo daquele homem. Ele agarrou com fúria os cabelos de mamãe e a beijou. Senti vontade de chutar a canela cabeluda e grossa daquele ser estranho. Lançou-me um olhar maldoso e sorriu com malícia. Tomou um gole de café direto da pequena e branca xícara. Cuspiu no chão e gritou "Está horrível!". Golpeou o rosto frágil de mamãe com a palma de sua mão cabeluda e saiu dali resmungando. Esperei até que aquele homem ficasse fora de vista e corri para ela. Abracei sua cintura com amor. Olhei para cima e vi lágrimas escorrerem de seu rosto branco. Tão branco quanto a luz do luar.

     Acordei ofegante. Pensei com raiva naquele homem mal encarado.
     Dizem que isso é pecado, mas agradeço aos céus por meu pai ter morrido.

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